Aos 20 anos trabalhei num hospital em Londres, onde fiz quase 3 anos de SEN (state enrolled nurse).
Foi uma longa aventura da minha juventude, numa época em que ser mulher era ainda ter que baixar a cabeça à opressão imposta por um Estado ditatorial e às criticas de uma sociedade retrógrada.
Em Portugal pagava-se e ainda hoje se paga, para aprender enquanto lá, pagavam-nos para que aprendêssemos, em estágios e aulas semanais.
Foi numa dessas passagens pelas enfermarias de Geriatria que aprendi que a dignidade é o que nos resta, quando a vida perdeu sentido.
Quando a autonomia se perdeu e apenas nos resta o olhar turvo que não deixa ver o horizonte, será tempo de aguardar, ou de querer partir?
Quando a autonomia se perdeu e apenas nos resta o olhar turvo que não deixa ver o horizonte, será tempo de aguardar, ou de querer partir?
Foi num hospital de Londres que conheci duas mulheres que aos meus 20 anos, me ensinaram a tristeza de ficar e a coragem de partir!
A primeira, jazia há muito tempo imóvel, ferida, entubada e ligada a uma maquinaria infernal com um ruído monótono constante que apenas enxotava a morte que pairava pelo quarto, aguardando talvez uma brecha para se aproximar daquele corpo inerte e sugar-lhe finalmente a alma. Nunca vi que alguém a visitasse e a sua fisionomia revelava um mar de desilusão e desapego incomparáveis.
A segunda, já com muita idade, mas sempre lúcida, sofria a dor de uma perna gangrenada e as cada vez mais espaçadas visitas da família.
Os médicos convocaram então o seu único filho e anunciaram que ela só se salvaria se lhe amputassem a perna.
Não me recordo nem das palavras, nem das reacções à notícia, mas para que o procedimento cirúrgico pudesse avançar, era precisa uma assinatura de consentimento da paciente que neste segundo caso, estava no pleno uso das suas faculdades mentais.
Foi no momento em que lhe explicaram que a única forma que lhe restava de continuar viva, seria a amputação e que a ouvi gemer um categórico NÃO que entendi que para aquela mulher, a esperança de uma vida com amor, dignidade e autonomia, tinha morrido durante os dias penosos que passara naquela cama de hospital!
Passados três ou quatro dias, durante o meu dia de folga, Mrs Beamish partiu sem que eu tivesse tido tempo de lhe agradecer a mensagem de coragem e dignidade que inconscientemente me transmitiu e hoje penso que direito temos nós, para impor a vida, a quem já não a quer e se será ético prolongar o sofrimento de outros, através de uma simples e muitas vezes leviana cruz num Referendo?