terça-feira, 25 de setembro de 2018

LEPROSOS

   

Imagem relacionada

 Hoje veio-me à memória, um episódio insólito ocorrido há umas dezenas de anos, quando fiz dois anos de cooperação na Guiné Bissau. 

    O calor húmido convidava-nos a aproveitar o fresco das noites, na esplanada do Grande Hotel que de "grande", só tinha o nome, mas era lá que se reunia muita gente depois do jantar, antes que cortassem a luz, para um refresco e umas conversas à toa.


   Naquela noite, eu sentara-me com um colega do liceu, numa mesa de canto, para que ninguém ouvisse o que nos apetecia conspirar. 

   Falávamos do nosso Portugal há pouco tempo livre que contrastava com essa  Guiné independente, onde a democracia era uma miragem e a pobreza aumentava a olhos vistos, enquanto ia crescendo o pecúlio de entidades estrangeiras e dos seus governantes corruptos. 

   Nesse serão, a conversa foi interrompida por um guineense muito magro, de calças rotas arregaçadas que deixavam ver umas ligaduras sujas amarradas nas duas pernas. 

     Aproximou-se da nossa mesa e perguntou gentilmente, se lhe pagávamos uma cerveja. Puxámos uma cadeira e ele sentou-se satisfeito, contando que era de longe, mas que tinha vindo a Bissau, porque tinha precisado de tratamento hospitalar. 

   Quando, chegou a cerveja, bebeu de um só trago satisfeito, levantando-se em seguida e estendendo-nos a mão ossuda para um cumprimento demorado e amistoso, enquanto finalmente confessava que tinha fugido do hospital, porque o tinham levado para lá à força, depois de lhe ter sido diagnosticada Lepra.  

    Após o efusivo aperto de mão e logo que o homem se afastou, corremos cada um para sua casa, para um banho de álcool puro e roupa fervida. Ficámos depois a saber que se a Lepra  for seca, não é contagiosa, nem havia razão para tanto pânico, mesmo que não o fosse. 

    A razão de me ter recordado hoje deste episódio, passado há tantos anos, num país que me ficou no coração e ao qual prometi voltar, nem que seja por poucos dias, veio de um sentimento que há muito guardo e que me faz amar perdidamente essa África despojada de tudo, menos do seu encanto, da sua simplicidade, do cheiro a terra molhada e da generosidade do seu povo ingénuo, porque jamais houve interesse de o cultivar e menos ainda respeitar. 

     Hoje, vim aqui falar de um leproso que me apertou a mão e que hoje recordo com um sorriso carinhoso e emocionado, bem diferente desse sentimento que sinto pelos "leprosos" que vagueiam pelo meu país sem ligaduras, nem corpos magros de fome, mas cuja Lepra é mais contagiosa que a do guineense em fuga de um hospital abandonado e sem recursos de um país esquecido. 

     A razão pela qual fui buscar uma memória antiga para a comparar com a Lepra que grassa e corrói este meu país e este meu continente enfermo, faz-me arrepender profundamente não ter abraçado esse negro franzino de chagas cobertas por ligaduras imundas, porque vejo por aí abraços e afectos bem menos espontâneos e sinceros, dados por quem, sem sombra de vergonha, usa a Lepra do seu cérebro sujo, para manipular os incautos e os ignorantes, contagiando tudo à sua volta, minando a liberdade, a decência e alicerçando dia após dia, a ideia de uma democracia podre, da qual resta hoje apenas uma fugaz miragem... 

    Este não é o país do qual me orgulho, apenas porque me calhou ter nascido nele, mas se a África, é terceiro mundo, porque quem a colonizou e escravizou fez questão de desinvestir na cultura, na defesa das liberdades individuais e na educação das suas gentes, por cá a diferença não é tão grande, perante o laxismo e a impunidade que a cada passo nos agridem, bem como pelo atraso civilizacional a que muitas das nossas comunidades são votadas, com a conivência de uma religião que por cá impera, sem grande diferença das missões africanas que apenas prolongam, em grande parte dos casos, a submissão e a apatia dos rebanhos que só a fome reúne ao seu redor. 

    O meu encontro com a Lepra, fez-me analisar melhor o contexto que me cerca, as tradições repugnantes que se consentem, as heranças "culturais" que o álcool e a brutalidade das frustrações levam ao limite mais sórdido e essa classe política uniformizada que nos ultraja e cala, porque o povo é manso, tem medo e anestesiaram-no há muito, num faz de conta infame, lento e destruidor. 

     

     
        

1 comentário:

  1. Excelente e comovente texto. É com lágrimas nos olhos que lhe digo isto, Teresa Botelho.
    Obrigada por ser quem é e como é.
    Não podia estar mais de acordo consigo.
    Portugal precisa de muitas mais Teresas Botelho, para ver se acorda do torpor leproso em que está mergulhado.
    Vou partilhar o seu texto.

    ResponderEliminar